"A arte precisa ser livre", diz neta de Carlos Marighella em coletiva do filme
“A arte precisa ser livre", diz Maria Marighella, neta de Carlos Marighella e atriz no longa, em coletiva do filme, em São Paulo. Uma frase forte, e que resume todo o processo de produção e a longa jornada de lançamento de “Marighella”, primeira produção de Wagner Moura como diretor e obra biográfica de um dos maiores guerrilheiros contra o regime militar brasileiro.
Depois de censuras por parte da Ancine
e inúmeros boicotes do Governo Bolsonaro e seus apoiadores, “Marighella (2019)”
finalmente estreia no Brasil. O filme já teve cerca de 30 exibições em países
dos 5 continentes e conta com a estreia oficial no Brasil dia 4 de novembro,
com exibições a partir do dia 1.
“Marighella” conta a história de Carlos
Marighella, um escritor poeta, baiano, torcedor do Vitória, guerrilheiro, um dos
principais organizadores da luta armada, considerado inimigo número 1 do regime
militar. Marighella foi líder de um grupo de resistência contra a ditadura brasileira.
O grupo contou com jornalistas, estudantes, freis e aliados ao partido
comunista. Sua principal missão foi exterminar o regime totalitário e buscar novamente
a liberdade do país. Marighella foi morto por militares em uma emboscada no dia
4 de novembro de 1969 (não à toa a data de estreia do filme, que homenageia os
52 anos da morte do revolucionário). O filme retrata a história de 1964 à 1969,
mostrando um pequeno retrato do grupo que lutou incansavelmente pelo fim do
regime militar.
O longa é introduzido com uma breve
explicação de quem foi Carlos Marighella, seguido de uma cena de assalto à um trem,
que portava armas militares. No meio da cena, a música
Monólogo ao
Pé do Ouvido de Chico Science começa e dá o tom ao filme logo
de início. A primeira sensação que tive ao começar a assistir foi: “sim, este é
um filme muito brasileiro.”.
O filme é a estreia de Wagner Moura
como diretor, que demonstrou um olhar brilhante ao retratar a obra de maneira ímpar
ao telespectador. Com uma fotografia impecável, um jogo de câmera dinâmico,
movimentos que guiam o ritmo das cenas e uma ambientação de figurinos até
cenários da época, nos fizeram entrar de cabeça na história e sentir a trama em nossos próprios corpos. A direção é
extremamente feliz na utilização de recursos técnicos ao acertar no tom da obra,
e possui uma doce sensibilidade para a construção da narrativa. Um exemplo disso é quando decide abafar o som de um choro
entalado que Marighella segurava a muito tempo. Na cena em questão, ocorre uma
situação com seu filho, sendo um momento muito pessoal e que foi tratado com
uma delicadeza exemplar. O abafamento do choro mostra dor, angústia,
silenciamento e o medo.
Ao longo do filme, roteirizado pelo brilhante Felipe Braga e o próprio
Moura, nos é apresentado uma ação que envolve e não cansa. Ainda na coletiva, Wagner
Moura disse: “Eu
queria fazer um filme popular, eu sempre quis me comunicar. Tudo que eu faço,
eu quero fazer para muita gente ver, e achei que os elementos inerentes ao
cinema dito de ação encaixariam bem nesse tipo de cinema popular. Quando eu
falo cinema popular, se tem uma coisa que eu aprendi com Zé Padilha, é que não
há nenhuma contradição em fazer um filme político e popular. Eu me interesso
por política, eu gosto de política e gosto que as pessoas assistam as coisas
que eu faço. Marighella era ação.”
Seu Jorge, premiado como melhor ator
pelo longa por festivais da Itália e Índia, conseguiu encontrar o tom perfeito para
representar Marighella. Com expressões e diálogos que buscam poetizar sem medo,
é possível desfrutar de uma teatralidade que o ator entrega em alguns momentos.
As ditas “frases de efeito” encaixam perfeitamente na atuação e não parecem
vazias ou fora de contexto.
Já Bruno Gagliasso diz: “Para mim foi
muito difícil, muito complicado. Meu caminho foi muito diferente dos meus
parceiros. Eu fiz um personagem racista, fascista. Eu tenho filhos negros e a
maior dificuldade foi encontrar isso em mim, porque eu não queria que fosse
nada óbvio. Eu tive ajuda da Fátima – preparadora de elenco – para fazer isso,
sem ela seria impossível. E eu acho que o que mais me motivou a encontrar esse
cara, foi saber que eu estava fazendo parte de um projeto muito maior, então não
era só artístico. Ali eu tinha consciência de que era também político, era a
minha forma de poder ajudar e me encontrar. Eu acho que foi assim que eu fui encontrando
qualquer resquício que eu pude de humanidade naquele cara, e vi que hoje está
cheio de gente assim, né? Eu vejo o Lúcio que eu fiz em vários lugares, em vários
momentos, principalmente porque eles realmente acreditam no que eles estão
fazendo, e isso foi muito doloroso para mim, muito, mas eu fui em busca disso,
dessa humanização do desumano.”. O ator descreve o processo de construção de
seu personagem, um agente de repressão extremamente cruel que tem como
principal objetivo acabar com Marighella e seus guerrilheiros. Bruno entrega
uma atuação absolutamente crível e densa, sendo possível notar nuances de seu
personagem em pessoas reais, como o próprio ator descreveu. Sem sombra de
dúvida, foi um de seus melhores trabalhos.
Falando rapidamente dos demais atores – de peso, diga-se de passagem –, Adriana Esteves segue sendo uma das atrizes mais brilhantes da geração, nos proporcionando diversas emoções ao vê-la em cena. Humberto Carrão, Bella Camero, Adanilo, Herson Capri e Luiz Carlos Vasconcelos entregam personagens fortes e geram empatia no público, que temem pela vida de seus personagens tanto quando temem pelo protagonista.
“Marighella” também evidencia os
freis, religiosos que foram importantíssimos para luta na época. Pastor Henrique
diz: “É essencial destacar a coragem dos freis dominicanos na luta contra a
ditadura. Eles se colocaram ao lado da causa da justiça social, da causa, da
democracia. Vários deles foram violentamente violentados, colocando em risco as
suas vidas, sua integridade física em prol da democracia e do combate à
ditadura. Então acredito que o registro histórico que tem que ficar é: freis
dominicanos, discípulos de Jesus de Nazaré, corajosos, que colocaram a sua vida
a disposição de uma causa de liberdade. Então acho que esse é um registro
importante que o filme consegue dar visibilidade à audácia, a ousadia, a
coragem da fé engajada desses freis dominicanos. Eu olho para eles sobre o
espectro da coragem.”
O longa é lindo, dramático, denso, uma
carta de amor ao Brasil, uma resistência. Cheio de reflexões assustadoramente
atuais e, arrisco dizer, com um grande potencial de virar um dos maiores clássicos
do cinema brasileiro, e também com grande visibilidade internacional, como quando
foi aplaudido por 10 minutos no Festival de Cinema de Berlim, em sua primeira
exibição em 2019.
“É um filme esperançoso, que aponta pra esperança, que aponta
pra passagem dessa semente plantada por Marighella, plantada pela resistência dos
Malês, por todas as resistências populares do Brasil e para quem está
resistindo agora,” disse Wagner Moura, fala na qual eu relaciono com a última cena
da obra: um grito entalado na garganta de quem ama o Brasil, uma reapropriação
de um hino que nos foi arrancado, afim de ser utilizado em prol do ódio. “Marighella”
vira um sopro de vida.
NOTA: 5/5